domingo, 18 de janeiro de 2009

A massificação de audiências e os danos impostos no humor inconsciente

Ultimamente tenho reflectido mais sobre uma noção que me persegue desde há muito tempo: até que ponto certo programa ou vaga de filmes pode ser involuntariamente engraçado sem atrair uma consciencialização que o obrigue a ser muito mais planeado? Planeado de modo a satisfazer o público que o adoptou por encontrar ali palhaçada e autenticidade (que podem ser duas partes de um mesmo núcleo). É inevitável reparar que alguns formatos televisivos, pensados com a mínima seriedade, atraem um vaga inicial de culto quando, por uma ou outra razão, oferecem comédia sem ser esse o seu propósito original. A partir daí, é curioso pensar que a graça abandona o seu foco à medida que a produção do programa adequa o formato a um público maior que muitas vezes ali chegou ao interceptar o entusiasmo dos espectadores pioneiros que formaram a primeira vaga de culto. Mesmo que este encadeamento sugira algumas noções que podem roçar o ridículo, importa tentar imaginar como seria o médio prazo de um programa obscuro e hilariante, caso os seus primeiros seguidores não partilhassem o gosto por ele.

Neste caso, o melhor é exemplificar: o rei dos programas de culto da minha geração, “Made In Portugal”, é um caso saliente por ter permanecido geralmente imperturbável em relação à qualidade inferior de alguns dos telediscos exibidos. Se bem me recordo, o apresentador Carlos Ribeiro nunca sugeriu qualquer chacota ou arrogância quando deu tempo de antena a clássicos “trash” como “O Gorila” de Márcio Lee ou “Na Boquinha da Garrafa” do debochado colectivo Krypta. O primeiro teledisco, além de um refrão “maroto”, tinha como protagonista um gorila minimamente convincente filmado com notório amadorismo; o segundo roçava muitas vezes a indecência com imagens de uma bailarina (“raimunda”) seduzida pela forma fálica de uma garrafa. Ambos recuperavam alguma da desproporção monstruosa dos estúdios Toho em montagens que servem como precioso kitsch para quem as conseguir recuperar. Devem ser pérolas raras.

Há que louvar o “Made In Portugal”, um dos mais intocáveis tesouros da televisão portuguesa do último quarto de século, pela perseverança e firmeza demonstrada à medida que atraía o público mais interessado em observar as fragilidades dos telediscos caseiros, obtendo enorme gozo com isso (“Toxicodependente Recuperado” de Mário Jorge é outro caso espalhafatoso na apropriação que faz do drama provinciano do drogado que não consegue cortar com o passado). Não será fácil respeitar uma significante falange de público que assistia ao programa para ficar a par das novidades no terreno da canção popular portuguesa e, ao mesmo tempo, manter a seriedade enquanto se anuncia a passagem do teledisco “Praia do Nudismo” ou o tardio hino de emigrante, “Tá qui tá qui, tá lá” (os nomes podem não estar exactamente correctos). “Made In Portugal” manteve-se na grelha da RTP durante temporadas várias sem alienar os vários públicos. É quase único nessa façanha.

Mais tarde, a longa mutação sofrida pelo programa “N Amadores” (exibido na extinta NTV) ilustra perfeitamente a influência que uma adesão massiva de público pode ter na linha editorial da tal hora de televisão. Antes de ser um fenómeno, o “N Amadores” era um magazine – orientado por uma ética jornalística - dedicado aos escalões amadores de futebol, o que muitas vezes equivalia a reportagens sobre derbis de dimensão regional e o apanhado cru das eventualidades desses (não há como esquecer o riso medicinal provocado por alguns festejos de golo únicos – acenar a bandeirola de canta - e outras tantas batalhas campais). O meu caro amigo Miguel Gomes discorda desta minha perspectiva, que aponta o “N Amadores” como programa de vocação séria, argumentado que já nessa altura o magazine explorava a margem humorística proporcionada pela pobreza dos jogos e estádios retratados e pela riqueza vernacular das “lendas locais” que eram entrevistadas entre os lances decisivos. Diria, aceitando um meio-termo, que o “N Amadores” nesse momento era já um programa rendido ao que o público esperava dele (mais “cromos” entregues a solilóquios delirantes, mais histórias de balneário, uma apreciação mais abrangente do pequeno Portugal que servia de contexto a desafios muito fraquinhos). É fácil constatar que, quando mereceu o nome de “Liga dos Últimos” e, mais tarde, a apresentação “descontraída” de Álvaro Costa, o formato estava já perfeitamente enquadrado no aproveitamento máximo seu rendimento cómico, com as entrevistas sucessivas ao Capitão Moura e tudo mais. Inteligentemente, a própria RTP soube acentuar os contrastes ao colocar o programa “N Amadores” logo após o magazine da “Liga dos Campeões” (apresentado por uma das mais bonitas e exóticas figuras da televisão portuguesa actual).

Numa ala diferente, mais receptiva a integrar a ficção, encontram-se casos marcantes como “Nunca Digas Banzai” (Jogos Sem Fronteiras com um twist masoquista), que a SIC dos primeiros tempos tratou de aproveitar como veículo para fazer humor com alguns nomes actuais (os concorrentes japoneses eram entrevistados como ministros e celebridades do nosso país). O “Takeshi’s Castle”, nome original da série, inverte um pouco a tendência mencionada no título do post e coloca a SIC no lugar de quem aproveita antecipadamente o potencial patético do programa mesmo antes do público se pronunciar. Não é muito definida a minha ideia dos primeiros tempos de “Banzai”, mas calculo que tenha já nascido entregue a um total carnaval de referências trocistas.

Aproveitando “Banzai” como ponte para o cinema de artes marciais, não há como deixar de fora a quantidade industrial de paródias que se fazem hoje orientadas no sentido de satirizar alguns filmes de porrada produzidos na Ásia com orçamentos reduzidos. Atente-se, por exemplo, a “Kung Pao”, “O Panda do Kung-Fu” (popular à escala global) ou ao híbrido “Shaolin Soccer” (que explora uma premissa pretensamente séria – a luta do bem contra o mal -, embora arruinada por um exagero grotesco): todos repescam alguns dos traços dos filmes de artes marciais, ampliando o factor mais ridículo ou carinhosamente estúpido de cada um desses. Muitas vezes sem a perspicácia sublime dos Monty Python, que subvertem todo o imaginário das Cruzadas no “Holy Grail”. Será de enorme dificuldade tentar criar um índice de popularidade que avalie os filmes de Ninja mais apreciados por um público maior (a série simplesmente intitulada “Ninja” é um bom ponto de partida), mas a soma dos casos isolados, que manifestam gosto pela parvoíce e debilidade de um filme de Ninjas, formam uma vontade e um ideário de humor que abre depois uma oportunidade a ser explorada pelos grandes estúdios. O “exploitation” gera “exploitation”, e acabam por ser produções quase irrelevantes como “Ninja Dragão” (jóia da coroa Godfrey Ho e favorito meu que pode ser sondado aqui: http://www.youtube.com/watch?v=WNzFHSVqur8) a servir gigantes de popularidade como “Kung Pao” e outros. O público, fragmentado em mil, adere ao produto original e, depois unido, à paródia que sumariza o conjunto de filmes autênticos. Dá que pensar.

Hoje, a Benfica TV vai tentando explorar um terreno fronteiriço (entre o imbecil e o desportivamente relevante) com os jogos relatados por José Carlos Soares (jornalista de declarada vocação sensacionalista desde os tempos do OVNI “Bombástico”). Enquanto o público não se converte totalmente ao quase-ridiculo das transmissões dominadas por imagens dos comentadores, do público e dos bancos de ambas as equipas, vai passando impune essa pobreza de hora e meia sem o clímax do jogo que deve ser as grande jogadas e os golos. A Benfica TV, nos jogos em que não está autorizada a filmar o relvado, abre espaço para os apreciadores do estilo espontâneo e corriqueiro de José Carlos Soares até à altura em que for firme a noção nacional de que algo de inacreditavelmente estúpido por ali se passa. Quando assim for, vai ser tarde demais para testemunhar a verdade apatetada que hoje abunda nas transmissões “marginais” dos jogos na Benfica TV. A massificação do público aniquilará o riso sincero.

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